Sunday, September 07, 2008

O Ranço Salazarista

A lucidez amarga de BB.


Baptista Bastos - b.bastos@netcabo.pt

Cada vez mais nos afastamos uns dos outros. Trespassamo-nos sem nos
ver. Caminhamos nas ruas com a apática indiferença de sequer sabermos
quem somos. Nem interessados estamos em o saber. Os dias deixaram de
ser a aventura do imprevisto e a magia do improviso para se
transformarem na amarga rotina do viver português e do existir em
Portugal.


Deixámos cair a cultura da revolta. Não falamos de nós. Enredamo-nos
na futilidade das coisas inúteis, como se fossem o atordoamento ou o
sedativo das nossas dores. E as nossas dores não são, apenas, d'alma:
são, também, dores físicas.

Lemos os jornais e não acreditamos. Lemos, é como quem diz - os que
lêem. As televisões são a vergonha do pensamento. Os comentadores
tocam pela mesma pauta e sopram a mesma música. Há longos anos que a
análise dos nossos problemas está entregue a pessoas que não suscitam
inquietação em quem os ouve. Uma anestesia geral parece ter sido
adicionada ao corpo da nação.

Um amigo meu, professor em Lille, envia-me um email. Há muitos anos,
deixou Portugal. Esteve, agora, por aqui. Lança-me um apelo veemente e
dorido: 'Que se passa com a nossa terra? Parece um país morto. A garra
portuguesa foi aparada ou cortada por uma clique, espalhada por todos
os sectores da vida nacional e que de tudo tomou conta. Indignem-se em
massa, como dizia o Soares.'

Nunca é de mais repetir o drama que se abateu sobre a maioria.
Enquanto dois milhões de miúdos vivem na miséria, os bancos obtiveram
lucros de 7,9 milhões por dia. Há qualquer coisa de podre e de
inquietantemente injusto nestes números. Dir-se-á que não há relação
de causa e efeito. Há, claro que há. Qualquer economista sério
encontrará associações entre os abismos da pobreza e da fome e os
cumes ostensivos das riquezas adquiridas muitas vezes não se sabe
como.

Prepara-se (preparam os 'socialistas modernos' de Sócrates) a
privatização de quase tudo, especialmente da saúde, o mais rendível. E
o primeiro-ministro, naquela despudorada 'entrevista' à SIC, declama
que está a defender o SNS! O desemprego atinge picos elevadíssimos.
Sócrates diz exactamente o contrário. A mentira constitui, hoje, um
desporto particularmente requintado. É impossível ver qualquer membro
deste Governo sem ser assaltado por uma repugnância visceral. O
carácter desta gente é inexistente. Nenhum deles vai aos jornais, às
Televisões e às Rádios falar verdade, contar a evidência. E a
evidência é a fome, a miséria, a tristeza do nosso amargo viver; os
nossos velhos a morrer nos jardins, com reformas de não chegam para
comer quanto mais para adquirir remédios; os nossos jovens a tentar a
sorte no estrangeiro, ou a desafiar a morte nas drogas; a iliteracia,
a ignorância, o túnel negro sem fim.

Diz-se que, nas próximas eleições, este agrupamento voltará a ganhar.
Diz-se que a alternativa é pior. Diz-se que estamos desgraçados. Diz
um general que recebe pressões constantes para encabeçar um movimento
de indignação. Diz-se que, um dia destes, rebenta uma explosão social
com imprevisíveis consequências. Diz a SEDES, com alguns anos de
atraso, como, aliás, é seu timbre, que a crise é muito má. Diz-se,
diz-se.

Bem gostaríamos de saber o que dizem Mário Soares, António Arnaut,
Manuel Alegre, Ana Gomes, Ferro Rodrigues (não sei quem mais, porque
socialistas, socialistas, poucos há) acerca deste descalabro. Não é só
dizer: é fazer, é agir. O facto, meramente circunstancial, de este PS
ter conquistado a maioria absoluta não legitima as atrocidades
governamentais, que sobem em escalada. O paliativo da substituição do
sinistro Correia de Campos pela dr.ª Ana Jorge não passa de isso
mesmo: paliativo. Apenas para toldar os olhos de quem ainda deseja
ver, porque há outros que não vêem porque não querem.

A aceitação acrítica das decisões governamentais está coligada com a
cumplicidade. Quando Vieira da Silva expõe um ar compungido, perante
os relatórios internacionais sobre a miséria portuguesa, alguém lhe
devia dizer para ter vergonha. Não se resolve este magno problema com
a distribuição de umas migalhas, que possuem sempre o aspecto da
caridadezinha fascista. Um socialista a sério jamais procedia daquele
modo. E há soluções adequadas. O acréscimo do desemprego está na base
deste atroz retrocesso.

Vivemos num país que já nada tem a ver com o País de Abril. Aliás,
penso, seriamente, que pouco tem a ver com a democracia. O quero,
posso e mando de José Sócrates, o estilo hirto e autoritário, moldado
em Cavaco, significa que nem tudo foi extirpado do que de pior existe
nos políticos portugueses. Há um ranço salazarista nesta gente. E, com
a passagem dos dias, cada vez mais se me acentua a ideia de que a
saída só reside na cultura da revolta.

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